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Ritalina: A pílula da discórdia

Há quem lhe chama a pílula da inteligência. Indicada para tratar a hiperatividade e o défice de atenção, a ritalina divide opiniões. Os mais críticos alertam para o seu uso selvagem e para o perigo de estar a “robotizar” meninos mal comportados. Numa coisa, todos estão de acordo: não é uma vacina nem faz milagres.

António, 16 anos, nunca deu sinais de ser uma criança hiperativa ou com défice de atenção. Mas as negativas acumularam-se no segundo período e a mãe, aconselhada por uma amiga e cansada das queixas constantes dos professores sobre a “distração” do António, levou-o a um neuropediatra. Após um breve interrogatório, o médico concluiu que não se tratava de uma criança hiperativa ou com défice de atenção – “todos nós nos distraímos quando não estamos interessados no assunto”, justificou – mas, ainda assim, receitou-lhe uns comprimidos que, disse, o iriam “ajudar a concentrar-se nas aulas”. O efeito fez-se notar logo dois dias depois. A ponto do próprio António se admirar: “Passei a aula de Físico-Química a tirar apontamentos!”
Receitado para tratar a chamada Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA), o metilfenidato, vulgarmente conhecido como ritalina (nome comercial de um dos medicamentos com aquela substância ativa), está a ser abusivamente usado para “tratar” o “mau comportamento” e a falta de atenção nas aulas e, assim, a ajudar a melhorar o rendimento escolar. As denúncias desta prescrição abusiva e exagerada, que têm gerado acesa polémica noutros países, chegam-nos das mais variadas formas. De pais, que questionam a “doença” dos filhos e as vantagens do metilfenidato, de professores, que descrevem casos de crianças “apáticas” nas aulas, e dos próprios médicos e psicólogos, que reconhecem diagnósticos errados e prescrições indevidas.


Pedro Cabral, diretor clínico do Cadin-Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil, reconhece que está a ser feito “demasiado uso da medicação” e confessa-se “chocado” com a “forma selvagem” com que, por vezes, ela é administrada. “Isto acontece porque o enfoque é posto no comportamento e não no défice de atenção”, explica, justificando: “Os pais precisam de crianças sossegadas em casa e os professores de alunos bem comportados e atentos”. A verdade, admite o neuropediatra, é que muitas vezes a medicação é dada de “forma avulsa” e simplesmente para melhorar o comportamento. Mas “a ritalina não é para subir as médias“ nem “para estar bem comportado, é para estar atento quando precisa de estar atento”. E isto, nota, apenas quando “a performance da criança está aquém das suas capacidades”.
A psicóloga Teresa Paula Marques reconhece igualmente que “receitar ritalina para aumentar as notas, ou para controlar comportamentos, é um absurdo e pode conduzir a graves problemas no futuro”, lembrando que “estamos a falar de estimulantes do sistema nervoso central, que só devem ser tomados por quem realmente necessita”. Também o pedopsiquiatra Pedro Strecht defende que “a medicação tem que ser usada em casos muito bem diagnosticados”, lembrando que “a intervenção farmacológica é a última resposta a usar em crianças e adolescentes”.


Autoestradas no cérebro


Ana Vasconcelos, pedopsiquiatra e neuropsicanalista, é também ela, uma forte crítica do uso indevido deste psicoestimulante. “A ritalina, ao melhorar a fluência e o fluxo dos neurotransmissores, cria autoestradas no cérebro”, diz, alertando para os perigos de estarmos a moldar as crianças e a roubar-lhes a sua autenticidade. “O medicamento vai permitir que o cérebro funcione de forma muito mais eficiente, melhorando a atenção e diminuindo fatores incomodativos como a emoção, a atividade motora e a impulsividade”, nota, considerando que isto pode afetar as capacidades criativas e artísticas. O neuropediatra Pedro Cabral concorda: “Ao aumentarmos a capacidade de concentração da criança, estamos a diminuir-lhe a sua capacidade de viajar pelo mundo interior e a limitar-lhe a criatividade”.
A pedopsiquiatra vai ainda mais longe. “O remédio pode robotizar a criança, fazer dela uma marioneta… fazer com que a criança fique apática e sem capacidade de lutar”, não permitindo que “aprenda a lidar com as contrariedades”. Além disso, alerta, “não podemos esquecer que a ritalina é uma anfetamina”, com eventuais efeitos graves. “Não as ajuda a crescer, tiras-lhe o prazer e dota-as de um ‘eu’ menos bem constituído”.

Enfoque errado


O neuropediatra Nuno Lobo Antunes tem uma visão diferente. Considera que falar em uso abusivo do metilfenidato é desviar a atenção para algo “que não é importante”. Reconhece que pode acontecer “ocasionalmente”, mas que “o ênfase deve ser dado nas centenas de milhares de crianças com défice de atenção que ainda não estão medicadas”. A questão “não é o abuso, mas a insuficiência”, falar de exageros é colocar a questão no “enfoque errado”, sublinha.
“Medicar a mais é um pecado, mas não medicar quem podia ser ajudado é igualmente um pecado… e este é mais frequente que o primeiro”, defende, insistindo: “Dizer que a ritalina é uma moda é uma ideia infundamentada, um mito urbano que se propaga…”. Além de que, prossegue, “presumir que os pais dão ritalina de uma forma ligeira é um absurdo” pois, justifica, “não é fácil para um pai ou para uma mãe dar esta medicação aos filhos, a relutância é geralmente enorme”. Inclusive, acrescenta, existe alguma dificuldade em admitir e expor o problema. “O défice de atenção geralmente está associado a ronha”, nota, sublinhando que “não é fácil os pais admitirem que existe um problema destes e que têm que o enfrentar”.
Talvez por isso, e “ao contrário do que se diz, o número de crianças medicadas é muito inferior àquelas que necessitariam”, diz, lembrando que o metilfenidato “é mais eficaz que qualquer outra terapia” no tratamento da PHDA. E passa a desmistificar os seus perigos. “A ritalina atua na disfunção no sentido de atenuar a desafinação do cérebro”, lembrando que “o cérebro de um adolescente é diferente do cérebro de um adulto” e que, por vezes, pode precisar de algo que o ajude no sentido de reduzir o défice de atenção”.

Como tomar um café


Quanto aos danos causados por eventuais efeitos secundários, o neuropediatra garante que “os graves são raríssimos” e que dizer que “causa dependência ou que faz mal ao coração é completamente errado”. E nota: “O metilfenidato foi inventado em 1938: não há nenhum medicamento tão bem conhecido e investigado”. Ainda assim, não deixa de enunciar algumas cautelas, lembrando que o medicamento é sempre prescrito caso a caso e com uma avaliação anual. Além de que, “é preciso alguma experiência e bom senso para adequar a dosagem e a formulação às necessidades e ao quotidiano da criança. E isto tem que ser feito à medida”, diz, adiantando que existem casos em que é necessária a intervenção de outros especialistas, designadamente de um psicólogo.
Nuno Lobo Antunes lembra ainda que esta é uma medicação quase sempre temporária porque “numa fração importante, o défice de atenção e hiperatividade diminui na adolescência (dois terços das crianças com défice de atenção quando chegam à idade adulta já não precisam de tomar ritalina)”.
Também Pedro Cabral, apesar de reconhecer alguns usos indevidos, não deixa de defender o recurso a esta medicação. É certo que cada um tem o seu tempo e o seu ritmo, mas também é verdade que “há muitas crianças que precisam de ser ajudadas farmacologicamente”, diz. “Quando uma criança tem um défice de atenção é legítimo melhorá-lo”, defende, considerando que “não se trata de a pôr bem comportada, mas apenas de a pôr atenta quando precisa de estar atenta”. Nem tão pouco “de lhe estar a dar nada que ela não tenha, mas apenas de lhe dar acesso a recursos que ela tem, mas que não tem em condições normais, ou seja, quando a sua performance está aquém das duas capacidades”. “E atenção, nota, estamos perante um psicoestimulante – não é uma droga, não dá dependência, nem tolerância.  É como se fosse um café… que muitos também usam para aumentar a capacidade de concentração”, diz, lembrando que “tudo aquilo que aumenta vigília, aumenta a concentração”.


Ainda assim, tudo tem que ser monitorizado e avaliado periodicamente. Uma análise criteriosa que exige um envolvimento constante dos pais, seja no diagnóstico da situação (o que está a causar o problema) ou nos efeitos da medicação. “É preciso estar sempre a avaliar. E ter um feedback regular do que está a acontecer”, diz. Até porque a criança pode deixar de precisar de ser medicada (“passo mais tempo a tirar medicação do que a receitá-la”).

Uma boa ferramenta


Temporária ou não, a verdade é que a administração da ritalina, quando estritamente necessária, envolve alguns cuidados e “trabalho” por parte da família. É que, não basta tomar o comprimido e esperar que faça efeito. “Não é uma vacina… e os pais têm que ser responsáveis pelos seus filhos”, defende a pedopsiquiatra Ana Vasconcelos que, apesar de crítica, não se coíbe de receitar metilfenidato quando estritamente necessário.
“Pode ser útil”, mas exige “trabalho” por parte dos pais, insiste, especificando: “Para começar, os pais têm que ser informados sobre o que é dar um medicamento destes num cérebro em formação e em que é que o medicamento pode ajudar a criança”. Se, a par da medicação, os pais ajudarem a criança a perceber o que está mal e o que pode mudar, então a ritalina estará a ser bem aproveitada. “A criança fica a dominar a ferramenta e a conhecer-se melhor”. O que é preciso, diz ainda, “é ter bom senso e tentar perceber que benefícios a criança vai ter a nível das suas capacidades cognitivas, relacionais e emocionais”.
A psicóloga Teresa Paula Marques concorda: “A ritalina ajuda bastante porque permite que a criança se mantenha mais concentrada em ambiente escolar”, mas “por si só não faz milagres”. Por isso, defende, que seja “ complementada por uma intervenção psicológica junto da criança e também dos pais”, especificando: “A criança tem, por exemplo, de ser estimulada no sentido de aprender a lidar com as situações de um modo menos impulsivo, no ensino de estratégias mais eficazes em termos de estudo e de manutenção da atenção … e aos pais, importa fazer um trabalho de aconselhamento, no sentido de aprenderem a lidar mais eficazmente com uma criança hiperativa e/ou com défice de atenção”.


Aliviar sintomas


Uma terapia que, na opinião dos especialistas, deve ainda ser acompanhada por uma análise profunda acerca da origem e das razões que estão por detrás da hiperatividade ou do défice de atenção. “A ritalina pode ajudar desde que a família saiba o que leva a criança a tomar a medicação, de onde vem aquela perturbação”, diz Ana Vasconcelos, adiantando que, por vezes, “a irritabilidade da criança pode apenas ter a ver com o facto de ter entrado na escola demasiado cedo”. O neuropediatra Pedro Cabral concorda. ”Não se pode fazer tábua rasa do que está a causar o défice atenção”, diz, apontando razões como “uma criança deprimida, uma dinâmica familiar afetada ou uma baixa auto-estima”. Porque se é verdade que há pessoas que, geneticamente, têm dificuldades para se concentrar em tarefas, também há casos em que esta perturbação advém de um mero isolamento ou de uma profunda tristeza.
Uma opinião partilhada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht.  A medicação “alivia os sintomas com sucesso” mas, defende, “devemos e podemos intervir para compreender verdadeiramente o que está em causa e por que aparecem esses sintomas”, diz, reconhecendo que poderá ser apenas necessário “responder do ponto de vista individual, familiar e escolar”.
Atualmente, “há muitas alternativas de intervenção psicoterapêutica, psicopedagógica e familiar, sobretudo as que valorizem a verdadeira causa da situação (distúrbio familiar, tensão/ansiedade da criança, perturbação depressiva, má integração de regras e limites, etc)”, insiste, considerando que “usar exclusivamente a medicação sem se proceder a uma análise mais profunda das suas origens é um erro grosseiro”.
“Não é à toa que Portugal comanda o ranking dos países da União Europeia com maior taxa de consumo de psicofármacos por crianças e adolescentes, o que é obviamente triste”, lamenta ainda Pedro Strecht, considerando que o uso abusivo desta medicação acaba por ser sintomático de uma “doença” generalizada: “A nossa sociedade procura cada vez mais pílulas para tudo: escola, felicidade, amor…”,  diz,  mas o que importa perguntar – remata – “é se estamos a calar sintomas ou a tratar pessoas…”.


“TEM COISAS BOAS E MÁS”

Linda Serrão, presidente da Associação Portuguesa da Criança Hiperativa, tem três filhos a quem foi diagnosticada Perturbação da Hiperatividade com Défice de Atenção (PHDA) e a quem foi prescrito metilfedinato.  Reconhece que o fármaco “tem coisas boas e coisas más”, mas garante que a medicação, só por si, não resolve nada. “Não é dar a o comprimido e esperar que aquilo faça efeito”, diz, defendendo a necessidade de uma intervenção em “trabalho de equipa” que envolva médico, escola e família. “A ritalina pode ser muito útil, mas os pais têm que ser muito bem formados para que consigam reeducar os filhos”, defende, considerando fundamental a intervenção de um psicólogo educacional. A exemplificar, cita o caso de um dos filhos, que “teve se ser acompanhado para aprender a lidar com a frustração e com o facto de ser posto de parte”. É verdade que “os meus filhos não deixaram de ser quem são com a medicação, que aprenderam facilmente a lidar com o problema e que estão mais estáveis” mas, reconhece, que este é um “processo muito longo” e que só pode ser vencido com um acompanhamento adequado.